Questionando Deus e os Homens V

Deus e o Diabo

Até meus oito anos, eu tinha muito medo do Diabo, dos demônios e de Satanáz; porém, eu tinha um poderoso protetor, meu anjo da guarda.

Meu Anjo, com certeza, poderia pedir ajuda aos anjos-da-guarda dos meus pais e dos meus irmãos… Sim, eu tinha muito medo desses espíritos malignos; contudo, a proteção dos anjos dava-me coragem.

Todavia, naquele dia de chuva, no período da primavera quando a mãe pediu que fôssemos a casa do Chico e da Judite, emprestar um pouco de banha, uma estória nova iria marcar a minha vida.

Chegamos a casa dos vizinhos – uma casa feita de duas casas: na casa maior, conjugada a uma espécie de depósito, ficavam os quartos de dormir, noutra bem isolada e de um cômodo só, ficava a cozinha cujo interior é todo preto escuro, tingido pela fuligem e a mesa de refeições. Próximo á mesa e ao redor do fogão, feito numa base cheia de terra, cinzas e lenhas queimadas, que ficavam dentro de uma espécie de grande caixote, feito de pranchões.

De uma viga de madeira muito acima do fogo. – desce uma grande corrente na qual é pendurada a panela de ferro, utilizada para fazer a polenta, cozinhar o feijão ou carne ensopada, segundo o prato do dia, que a família de seu Chico e dona Judite vão comer.

Estamos há algum tempo na casa dos vizinhos, quando meu irmão Nelson de aproximadamente cinco anos, não se contém e fala:

– Dona Judite, a mãe pediu um pouco de banha emprestada.

– Judite, – Intervém seu Chico – vai lá no quarto das meninas e pega meio quilo de banho das saracuras.

– Banha de saracura? – Pergunta Lírio, meu irmão, expressando admiração.

– Vocês não sabem como é rica esta terra, em que vocês acabam de vir morar! – Exclama Chico, cheio de entusiasmo – Já matei porco do mato que rendeu uma lata e meia de banha; sim, trinta quilos de banha.

– Aqui está a banha que sua mãe pediu emprestada.

– Isso é banha de Saracura? Perguntou Lírio, questionando pragmaticamente.

– É sim – confirma Judite, sempre aprovando tudo o que o marido fala – Só que as saracuras eram tão gordas que parece banha de porco ou de tateto.

– Que tateto? Pergunta Nelson

– Tateto, responde Chico – É o porco do mato ou porco da invernada do Lúcifer. Ele tem uma criação enorme, lá no canhadão.

– Canhadao? – Pergunto eu.

– Sim Pedrinho, – retruca seu Chico – é aquele perau que existe nos fundos da terra que seu pai comprou. No fundo daquele canhadão, depois das quatro quedas d’ água: a primeira queda de 1 metro e meio, a segunda de 5 metros, a terceira de 45 metros e a última de 80 a 100 metros, fica o canhadão do Lúcifer, dos tatetos e da bola de fogo…

– Pára, pára Chico! – Exclama Lírio – o senhor está mentindo, o Dante já me disse que o senhor inventa muitas histórias e é muito mentiroso.

– O Dante é muito gabola e tem inveja de mim, porque quando falo minhas verdades, todas as pessoas prestam atenção no que digo e deixam ele de lado. Lírio, eu posso ser barbudo, feio e meio velho, mas sempre sei o que falo, pode crer.

Lírio pede desculpas e convida eu e Nelson para voltar pra casa.

No caminho de casa foi inevitável, fomos comentando o que vimos e ouvimos…

– Fiquei com medo, comentei – ao ver o diabinho descer a corrente e cair na panela de polenta. Só de pensar nisso, no tateto, no canhadão e na bola de fogo me arrepio todo…

Já em casa, logo pergunto, ainda assustado:

– Mamãe quem é Lúcifer?

Lúcifer – responde meu pai, sacudindo o corpo por um riso contido, sentado atrás do fogão à lenha. – Lúcifer, é o chefe, comandante de todos os demônios e diabos… Quem falou dele?

– Seu Chico disse que Lúcifer tem uma criação de tatetos, lá no canhadão nos fundos de nossa terra. E que lá tem uma bola de fogo.

No meio da conversa papai explica que Lúcifer era o anjo mais inteligente que Deus criou. Porém ele se encheu de orgulho por sua inteligência e de vaidade pela sua beleza. Quis se comparar a Deus. Contudo, Deus pai depois tentar colocá-lo em seu lugar, Lúcifer ficou mais metido ainda e aumentou sua rebeldia; por isso, Deus pai criou o inferno e colocou ele e todos os anjos que ficarão do lado dele nos fundos do inferno.

Papai explicava ainda que, Lúcifer era tão inteligente que aprendeu com seus diabinhos a fugir do inferno e começar a tentar também os homens e mulheres, e assim o Céu e a Terra passaram a ficar divididos entre o bem o mal.

Durante alguns dias minha cabeça fervia, cheia de confusão e de perguntas:

– Deus não sabe tudo? Então ele não sabia que ao criar um anjo tão inteligente e bonito como Lúcifer, ele poderia tornar-se orgulhoso e vaidoso e querer ser igual a Deus. Então Deus pai foi descuidado? Ou bancou o bobo criando Lúcifer?

Discuti essas coisas com Lírio e meu irmão ficou bravo comigo e disse que eu parecia ser um filho do pecado, mais filho de Lúcifer que de meus pais.

Eu fiquei muito assustado e nervoso, só de pensar que Lúcifer ou um diabinho pudessem me levar lá para o fogo do inferno, no meio de serpentes ou me pusessem lá no canhadão para cuidar de seus tatetos…

Passaram-se vários dias marcados por esse medo, porém a noite, ajoelhado do lado da cama, eu rezava fervorosamente para meu anjo da guarda:

Santo anjo do senhor,

Meu Zeloso guardador,

Pois que a ti me confiou,

A bondade divina,

Vigiai e iluminai os meus caminhos,

Para que eu sempre esteja protegido.

Amém!”

 

*** Seu Chico não é mentiroso, é o típico contador de histórias, contista e romancista do interior.

*** tateto = Porco do mato

*** canhadão = vale profundo e estreito ou depressão no terreno

***bola de fogo = lenda comum no interior, acredita-se que onde aparece a bola de fogo existe muito ouro enterrado. Porém o Diabo pode estar por perto guardando o tesouro.

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